Aconteceu assim

Aconteceu assim

Não me importava. Na verdade, nunca parei para pensar que aquela fumaça branca que minha boca soltava pelo ar, formando estranhas e diferentes figuras, deixassem meus pulmões escuros e meus dentes amarelos. Eram seis meses de um vício tolo que não me dominava. Não me fazia sair a qualquer hora para comprar os malditos cigarros e de forma nenhuma era capaz de pedir a quem quer que fosse alguma unidade para queimar. Conto isso, porque naquele dia em específico, acordei sonolento, desejando ter permanecido nos devaneios felizes, que apenas o mundo dos sonhos oferece. Meio que dormindo e acordado, passei a mão pela cama e confirmei que estava vazia. Sim, eu sabia que estava vazia, mas bateu uma esperança de que tivesse sido um sonho e que aquele corpo que visceralmente eu amava ainda estivesse ali, dormindo ao meu lado.

Apanhei o maço de cigarros na cabeceira ao lado e acendi o primeiro do dia. Foi rápido, sem aplacar minha ansiedade. Acendi mais um e mais outro, e segui acendendo, até que me restou o último. Contei no cinzeiro treze tocos, guimbas, como era mais comum me referir a eles. A cabeça doía, estava um pouco tonto. Apanhei o último cigarro e o coloquei em um vidro vazio que estava no armário do banheiro, olhei para ele mais uma vez e comuniquei:

— Você é testemunho de que jamais porei outro igual na boca.

Esbarrei em um objeto plástico que foi ao chão, espalhando inúmeros itens pequenos, entre eles, se encontrava uma escova de dentes vermelha, a cor não importava, mas era vermelha. Tinha tocado muitas vezes os lábios que eu beijei, percorrido a mesma boca que minha língua explorou. Agora estávamos órfãos, ela se foi. Ter deixado a escova poderia ser indicativo que pretendia voltar? Não, não era nada disso. O objeto estava gasto, já cumpriu sua missão, e ademais era como eu, algo descartado, sem valor no presente.

Naquela manhã, os jornais traziam as mesmas notícias, algumas delas eram puras invencionices, manobras de manipulação de massa. E daí? Ela se foi e nada mais importava. Ao longe tocou um sino, avisava que não era tão cedo quanto eu pensava.

A campainha tocou, atendi de má vontade. A vizinha informava que meu amigo, Peter, tentava falar comigo e o telefone estava fora do gancho. Pensei em não retornar à ligação, mas ela insistia que era urgente, caso de morte.

Entrei, indo direto ao aparelho, e liguei.

— Alô, Luiz! Você já está sabendo? — perguntou a voz ansiosa que atendeu.

— O que foi, Barbosa? — interroguei, mesmo sabendo que ele odiava ser chamado pelo sobrenome.

— Ela morreu. Não se sabe ainda de quê, mas está morta, isto é um fato.

— Quem morreu, santo homem?! Diga logo! — Estava impaciente.

— Suzy. Foi ela quem partiu.

Como um soco no estômago recebi essa notícia, não era possível. Estava pensando nela há poucos instantes, como fazia há seis meses, desde que ela foi trabalhar na biblioteca e de lá não mais voltou para casa.

Ainda o ouvi murmurar que o enterro seria às 16h e que o velório já começara.

Fui para o banho, me barbeei, me cortando algumas vezes. Me arrumei devagar, não tinha pressa em encontrá-la naquela situação. Procurei pelas chaves do carro, nenhum sinal. Apanhei a jaqueta jeans, o dia parecia frio lá fora. Desci as escadas como se apenas a ação da gravidade me conduzisse e estivesse com preguiça naquela hora. Ganhei a rua e fiz sinal para um táxi que parou em cima da faixa do pedestre, cinco metros à frente de onde eu estava. Dei o rumo do cemitério novo e me afundei no banco de trás.

Minha presença foi notada quando apontei na porta da capela, onde o corpo estava sendo velado. Ninguém se aproximou. Família, amigos íntimos dela e outros que antes frequentavam a nossa casa, todos se mantiveram nos lugares que ocupavam.

Me pus de pé, ao lado direito do ataúde. Ela trazia o mesmo ar de indiferença que me lançou da última vez que nos encontramos. Humberto se aproximou e disse:

— Ela ainda te amava.

— Então por que foi morar com você? — questionei, sem saber se queria ouvir a resposta.

— Porque você deixou de ser o homem por quem ela se apaixonou. — Inclinou os olhos para ela, buscando talvez confirmação ao que dizia. Pigarreou e reforçou a frase, cravando no meu peito outras palavras que eram igualmente afiadas como punhais. — Você mudou, cara, e ela não suportou ver você destruir o amor que tinham.

Antes de sair do meu lado, ele contou que ela teve um ataque cardíaco fulminante, não antes de repetir que eu havia maltratado muito aquele coração. Saí de fininho, carregando sobre as costas o peso de muitos olhares e a certeza de que era eu o culpado.

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